Como os jogadores do clube paulista contribuiram para redemocratização do país
“A democracia corinthiana foi um projeto que mobilizou todas as classes da sociedade brasileira e teve uma contribuição enorme para o fortalecimento do movimento para a volta da democracia no Brasil” - explica o jornalista e escritor Hélio Alcântara Pinto. A década de 1980 ficou marcada pela luta em busca da redemocratização do país contra a ditadura militar. Em meio a esse movimento, o Sport Club Corinthians extrapolou as barreiras do vestiário e implementou um projeto democrático que chamou a atenção da imprensa e de toda comunidade do futebol. Figuras como Sócrates, Wladimir, Zé Maria, Casagrande e Zenon, além de ídolos do futebol, se tornam cabos eleitorais e políticos pela busca da reconquista dos direitos dos cidadãos através do apoio ao movimento das Diretas Já!.
Nem todos de dentro do clube apoiavam as ideias que estavam sendo propostas, apesar de ter sido um movimento muito importante para história do futebol e do país. O Corinthians foi o único clube que elaborou um projeto ousado em um momento de repressão total dentro do país. Fora do clube, apenas figuras pontuais tomaram a iniciativa de expressar opiniões dentro do futebol. O jornalista Hélio Alcântara comenta que o projeto Corintiano não foi unânime dentro do clube, no mundo do futebol, para a maioria, era muito mais fácil cumprir ordens do que ter um pensamento ativo e opinativo nas questões dentro e fora de campo. “O mundo era diferente, mesmo naquela época só deu certo no Corinthians. Dentro do elenco havia muita gente que não entendia aquilo. Concentração, roupas, decidir horários, quem seria contratado ou não. Muitos jogadores e funcionários não queriam saber disso, seria muito mais fácil apenas cumprir ordens. Não concordavam, mas ficaram quietos porque estavam ganhando”, disse o jornalista.
Apesar de ter sido um movimento muito importante para história do futebol e do país, é preciso entender que nem todos de dentro do clube apoiavam as ideias que estavam sendo propostas, o Corinthians foi o único clube que teve esta iniciativa. Decidir a que horas e como seria a concentração, votar contratações de jogadores, para muitos jogadores e funcionários não era interessante, visto que poderia ser muito mais fácil apenas cumprir ordens e deixar de lado o lado opinativo e pensante dentro do futebol.
Para entender a Democracia Corinthiana é preciso explorar como funcionava a organização do clube antes da iniciativa do movimento. Em 1981, apesar de ter um time competente, o Corinthians, passava por uma fase ruim, não conquistava títulos de expressão há um bom tempo e tinha ficado em 8° lugar do campeonato paulista. A relação dos jogadores com o então técnico Oswaldo Brandão não era das melhores, eles não tinham lugar de fala e o presidente Vicente Matheus seguia uma linha autoritária de mandato. Neste mesmo ano o presidente não poderia mais se reeleger, por conta do estatuto do clube. Para continuar sendo influente, o presidente articulou uma manobra: colocou Waldemar Pires como presidente e ele próprio como vice. Waldemar seria apenas uma figura decorativa para que ele continuasse no comando do clube.
Após uma série de desentendimentos e rendimentos ruins, o presidente Waldemar Pires decide descentralizar o poder e assumir de fato a presidência, o que acarretou no afastamento de Vicente Matheus. Apoiado por boa parte dos conselheiros do clube, chama colaboradores de confiança para seguir com o mandato. Entre as ações feitas, ele oficializa Orlando Monteiro Alves como vice-presidente de futebol, que indica Adilson Monteiro Alves, como diretor de futebol do clube. “O Adilson era um cara muito hábil e trouxe os caras pra junto dele.” - disse o jornalista. O sociólogo, de 34 anos, era visto como subversivo, era militante e ativista dos direitos estudantis, a nomeação causou um espanto na imprensa da época.
No dia 27 de outubro de 1981, ficou marcado pela chegada do técnico Mário Travaglini, que gostava de trabalhar na base da conversa com os principais jogadores da equipe, no mesmo dia Adilson é apresentado para o grupo. O novo diretor de futebol expôs a nova proposta de trabalho para o grupo: “Na reunião, no hotel que o Corinthians usava para concentrar seus jogadores, Adilson diz que quer trabalhar discutindo e votando tudo o que se relaciona diretamente aos jogadores, seus ídolos.” - disse Hélio. Wladimir, Sócrates e Zé Maria gostaram da nova proposta e finalmente poderiam jogar e trabalhar de forma opinativa e com participação nas decisões do departamento de futebol.
Começa em 1982 a era de ouro da Democracia Corinthiana. O time inicia o ano na disputa da taça de prata, contra times mais fracos, mas rapidamente dá a volta por cima. Foi na disputa deste campeonato que surge uma figura muito importante para história do movimento, com apenas 18 anos, o centroavante, Casagrande ocupa o espaço de titular da equipe e marcou 4 gols na estreia. Depois de uma boa campanha o time volta para a disputa da Taça de Ouro (1ª divisão), cai em um grupo difícil mas mesmo assim termina a competição em 4° lugar. O desempenho e o novo modelo de gestão começam a chamar atenção da imprensa e de toda comunidade do futebol.
O que está acontecendo no Corinthians desperta paixão e ódio. Dentro e fora do clube. Conselheiros criticam os hábitos de atletas como Sócrates e Casagrande. Alguns dizem que o projeto que se desenvolve no Parque São Jorge é coisa de "um bêbado (Sócrates), um negro (Wla) e um drogado (Casa)". Os líderes percebem que a luta será diária e contínua. Os inimigos são muitos, e, nos outros clubes, ninguém os apoia abertamente.
O ano de 1982 foi um dos mais gloriosos da história do Corinthians, além de títulos e boas performances, o projeto da democracia implantado no clube causou uma avalanche dentro do futebol. Para o jornalista e escritor Hélio Alcântara: “todo o processo que aconteceu no Corinthians de 1982 até 1984 ajudou na mobilização da sociedade para redemocratização do país. Tudo o que aconteceu dentro daquele projeto teve uma contribuição muito grande nesse processo”. Os anos vitoriosos da democracia não perpetuaram por muito tempo, em 1983 as discussões internas e a perda de títulos fizeram com que o projeto acabasse.
As atividades políticas extra campo começam a ficar mais sérias em 82. Um episódio marcante, foi a proposta dos jogadores de fazer uma festa no Parque São Jorge para arrecadar fundos para o Partido dos Trabalhadores, em apoio à primeira eleição para governador estadual depois de 17 anos. O metalúrgico-sindicalista Lula, é o candidato ao governo de São Paulo, nas eleições marcadas para o dia 15 de novembro. O diretor topa, os conselheiros (contrários à democracia corinthiana) começam a ficar insatisfeitos. Fica estampado com muita clareza que as lideranças e o diretor de futebol são de esquerda.
A frase “dia 15 vote” ficou marcada como uma das movimentações políticas mais contundentes do projeto. Criada pelo jornalista Juca Kfouri e o publicitário Washington Olivetto, estamparam as costas das camisetas dos jogadores para incentivar os brasileiros a irem às urnas. O CND (Conselho Nacional dos Desportos, braço direito da ditadura dentro do esporte) se irrita e o presidente Jerônimo Bastos quer punir o clube. Mas apenas repreende o presidente e o diretor de futebol.
No dia 12/12/1982 o Corinthians vence o São Paulo por 3x1 e se consagra campeão Paulista daquele ano. O time que no início do ano era contestado tecnicamente e o azarão da final, provou a todos que o projeto democrático implantado funcionava dentro e fora dos gramados. A essa altura, os líderes da democracia corinthiana eram figuras aclamadas pela mídia e eram convidados para programas de rádio e televisão. O jornalista Hélio Alcântara explica como eram vistos pela sociedade naquele momento: “Se transformam em superstars - artistas, intelectuais, os profissionais liberais querem estar junto deles. Foi neste momento que eles entenderam que o projeto corintiano poderia ajudar e muito na campanha pela redemocratização do país”.
O primeiro alerta ao projeto corintiano aconteceu com a contratação do goleiro Leão. No final do ano o diretor de futebol não consulta ninguém do time para realizar a contratação. Leão tem uma personalidade muito forte, individualista e de direita. A ação de Adilson irritou praticamente todo o elenco que se fragmentou em dois grupos: Sócrates, Wladimir, Casagrande, Eduardo e Zé Maria de um lado e Leão do outro.
A separação do elenco em dois grupos fez com que as lideranças começassem a perder influência nas reuniões de votação. Ocorreram inúmeras confusões e os jogadores começaram a querer interferir no trabalho tático do time, o que incomodou o treinador Mario Travaglini. A solução achada pelo elenco foi chamar o então ex-jogador Zé Maria para ser treinador do clube. A imprensa conservadora começa a atacar o projeto e denomina de baderna e chama o projeto de anarquia. A partir daí, a chamada "democracia dos quatro" (a imprensa em geral dizia que o projeto no Corinthians favorecia apenas Wladimir, Sócrates, Casagrande e Adilson) se manterá sempre no alvo, e, de novo, precisará de títulos para se manter de pé.
O Corinthians conquistou o bi-campeonato paulista e apesar do goleiro Leão ter sido figura importante para o título não teve o contrato renovado. O 1º semestre de 1984 pode ser resumido como o ano em que os principais jogadores do Corinthians discutiram mais e se engajaram na luta pelas "Diretas Já!" do que treinaram. Em campo, não correspondiam mais como nos anos anteriores, foram eliminados na semifinal do Brasileiro por um time de nível inferior. Sócrates, que se machucou dias antes numa pelada em Ribeirão Preto, ficou na mira da torcida corintiana, que não o perdoou. A imprensa aproveitou para criticá-lo, chamando-o de irresponsável.
Em janeiro de 1984 começam os comícios a favor das Diretas Já!, em São Paulo, na praça da Sé. O narrador Osmar Santos já muito conhecido por fazer narrações poéticas emblemáticas dentro do esporte se torna a voz das diretas e começa a engajar os jogadores do Corinthians. O filho do narrador, Victor Sá, conta que a democracia veio para mudar que as pessoas tinham sobre o esporte dentro do país: “ A Democracia Corinthiana é um marco no futebol e política. Antes o futebol era visto como o ópio do povo. O movimento transformou o futebol em um ambiente mais racional”. Os líderes são chamados pra tudo, a favor da democracia.
A campanha pelas eleições diretas para presidente se intensificou no início do ano, mas em abril o congresso vetou a emenda Dante de Oliveira que previa a volta das eleições. Sócrates que havia prometido ficar enquanto o país não fosse um país democrático de novo, foi para a Fiorentina e Casagrande, após uma confusão com o técnico, foi emprestado para o São Paulo. O técnico também não quis ficar (fora desmoralizado pelo jovem) e pediu demissão. Ainda assim, o time chegou à última rodada do Paulista-84 precisando apenas vencer o Santos para ser campeão. Mas perdeu (1x0), e o sonho do tricampeonato enterrou a democracia alvinegra.
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