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Depois de ignorada, Fafá de Belém virou Musa das Diretas

Eduarda Farias

Cantora paraense desabafa sobre os desafios e prazeres de ser um símbolo do povo, para o povo.


“Em um dos comícios, uma senhora da organização me barrou e disse que eu não estava autorizada a subir. Me revoltei e comecei a gritar: ‘É o meu nome e a minha música que estão no cartaz à frente desse palanque. Pode olhar. Fafá de Belém e “Menestrel das Alagoas!’”. Em 1984, com cenário político marcado pelo suprapartidarismo e pelo protagonismo da sociedade na luta pela redemocratização, os artistas deram as caras e emprestaram criatividade e imagem pública à campanha das Diretas Já. Fafá de Belém recebeu a proposta de coração aberto e voz preparada. Mas a cantora declara que, antes de ser Musa das Diretas, foi ignorada pelos partidos organizadores dos comícios, alvo de difamação e chamada de “pé frio” quando rejeitaram a emenda Dante de Oliveira. Ainda assim, não se arrependeu de participar do maior movimento democrático da história do país.


Fafá foi presença constante nos palanques. Ganhou o apelido de Musa das Diretas depois de participar de 32 comícios e cantar a sua interpretação do hino oficial, “Hino Nacional Brasileiro”, e um dos símbolos musicais da campanha, “Menestrel das Alagoas”. A canção que se tornou ícone das Diretas Já homenageia um dos precursores da defesa pelas eleições diretas, Teotônio Vilela, senador alagoano que havia falecido em novembro de 1983. Com arranjo de Wagner Tiso e composição de Milton Nascimento e Fernando Brant, “Menestrel das Alagoas” encerra com a voz do homenageado: “Esta música é a melodia do povo. Sinto-me dentro dela porque venho fazendo de minha vida o roteiro da liberdade”.


A cantora relata que, em agosto de 1983, o senador soube da gravação e quis ouvi-la. Ela relembrou emocionada quando, na visita de Teotônio ao estúdio, ambos deram altas risadas e ele exclamou: “Minha filha, nossas gargalhadas podem fazer o chão deste país tremer!”. A morte do alagoano serviu de incentivo para que ela organizasse um showmício, em Olinda, Pernambuco, de tributo a ele. “Menestrel das Alagoas” foi lançada no evento, dia 4 de janeiro de 1984, com benção de Dom Helder Câmara, como conta a paraense. Segundo ela, quando a voz do senador surgiu nas caixas de som, bandeiras de partidos de esquerda e faixas pedindo eleições diretas se levantaram em comemoração.

Cantora Fafá de Belém com o senador Teotônio Vilela e o compositor Fernando Brant, no estúdio da Som Livre / Acervo Pessoal

O jornalista Ricardo Kotscho narrou o anúncio da morte de Teotônio e comentou o impacto da perda na campanha. Repórter especial da Folha de S.Paulo, ele recebeu o apelido de Cronista das Diretas por Ulysses Guimarães, então presidente do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e figura central da defesa à eleição por voto popular. Kotscho afirma que o comício em frente ao Pacaembu, em 25 de novembro de 1983, dia da morte de Teotônio, foi um ponto de inflexão. Apesar da unanimidade no apoio à democracia, os políticos recorrentemente entravam em conflito pelo protagonismo, mas, naquele dia, o comportamento dos partidos se transformou.


— Houve vários momentos de tensão do pessoal do PT (Partidos dos Trabalhadores) vaiando o PMDB, mas veio a notícia da morte do Teotônio Vilela, o menestrel das Alagoas. Um político que primeiro era da direita e apoiava o regime, depois, em uma determinada ocasião da vida, passou para a oposição e virou um grande líder pela redemocratização do país. FHC (Fernando Henrique Cardoso, senador de São Paulo), que era do PMDB, foi o único não vaiado porque anunciou o falecimento. Pararam as vaias, as brigas… não teve mais nada. A partir daquele momento a coisa andou de forma uniforme e unitária nos comícios seguintes.


Apesar da comoção que Fafá de Belém realizou na homenagem a Teotônio Vilela, a cantora afirma ter sido esnobada pelo PMDB, organizador dos comícios seguintes. No dia 12 de janeiro de 1984, em Curitiba, uma celebração do movimento lançou oficialmente a campanha e ela não foi convidada. Logo depois, no dia 25 daquele mês, os mesmos responsáveis cortaram seu nome do comício da Praça de Sé, em São Paulo, alegando que Fafá não fazia parte de nenhum movimento democratico. Ela expressou a frustração que sentiu e disse como foi o fundador do PT Lula, que tinha afinidade política e pessoal, quem a levou ao comício.


— Lula era meu amigo e usava minha casa para reuniões do PT em momentos de crise. Nesse dia, foi ele quem pegou na minha mão e disse “Você vai!”. Nós fomos, eu cantei e iniciei a tradição, que se repetiria em diversos outros comícios, de lançar uma pomba branca. A ideia foi de Henfil (jornalista e cartunista que apoiava ativamente a campanha), ele era genial.


Fafá ainda mencionou outras ocasiões em que se sentiu alvo enquanto figura política. A cantora relatou que, quando a emenda Dante de Oliveira não passou na votação, surgiu um boato falso sobre uma filiação política com o PT e a taxaram de azarada. Em uma participação na TV Cultura, cortaram o sinal do canal na hora da sua apresentação, atitude que, para a paraense, foi um ato de silenciamento e vergonha. No entanto, a presença de Fafá de Belém e de outros artistas na campanha é reconhecida, até o presente, como essencial para a popularização das Diretas Já!.


O ex-ministro das Comunicações Miro Teixeira destacou a mobilização artística como formadora do pensamento político da população e incentivadora da ocupação das ruas em busca da eleição direta para presidente em 1983 e 1984. Miro ainda afirmou que a presença de personalidades brasileiras na campanha era um ato político e cultural.


— Foi uma questão de transmissão de empatia e confiança por figuras que eram admiradas pelo povo e se dispuseram a entrar na militância política. Eles não foram buscar notoriedade. Eram pessoas que entregaram sua visibilidade ao povo, a serviço dele. Pela palavra do poeta, pela voz da cantora e até nos intervalos dos teatros, a proclamação era lutar pela democracia.


O Cronista das Diretas, Ricardo Kotscho, não foi o único a receber um título pela influência na campanha. O repórter explicou que convidou Ulysses Guimarães para escrever o prefácio do seu livro “Explode um novo Brasil”, publicado em 1984 ao fim das Diretas Já!, e foi presenteado com um manuscrito. No texto, que ele diz ter sido um dos maiores presentes de sua vida, o então presidente do MDB o intitula cronista oficial da campanha, Osmar Santos o Locutor das Diretas e Fafá de Belém a Cantora das Diretas.


Cantada nos palanques por Fafá, a letra de “Menestrel de Alagoas” se refere a um “menestrel que espalha esperança”, um “saltimbanco falando em rebelião”, alguém que “fala a língua do povo”. O historiador Daniel Cantinelli Sevillano, doutor em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, categorizou as expressões musicais do processo de redemocratização em dois momentos: utopia e distopia.


— No primeiro período, de 1980 até 1985, temos a transição democrática com aquele sonho do que poderia acontecer com as Diretas Já. Ainda com o baque da derrota da emenda Dante de Oliveira, a eleição do Tancredo Neves, mesmo indireta, traz um momento de utopia, de sentimento de que a ditadura terminou. No entanto, a morte de Tancredo é um ponto de virada. O segundo momento apresenta, no governo Sarney, uma distopia. Aquela esperança deu lugar a uma sensação de que o que poderia dar certo, não deu.


O jornalista Oscar Pilagallo, que trabalhou na Folha de S.Paulo durante as Diretas, destacou que “Menestrel de Alagoas” é uma das canções que representaram a esperança por tempos melhores de uma sociedade desgastada pela ditadura. Segundo o repórter, os artistas simplesmente compunham e já levavam músicas ao público nos palanques, disseminando positividade sobre o resultado da emenda Dante de Oliveira. Ele comentou como a campanha nasceu no Congresso e dominou a sociedade nos seus vários segmentos, inclusive o dos artistas que, quando chegaram, tornaram tudo muito potente e criativo.


Fafá de Belém ao lado de Franco Montoro e Lula em comício pelas Diretas Já / Acervo Pessoal

No dia 25 de Janeiro de 1984, artistas e intelectuais do Comitê de 25 de Janeiro se reuniram na rua Augusta, em São Paulo, para lançar a cor amarela como símbolo oficial da campanha nacional por eleições diretas. Em 15 de fevereiro do mesmo ano, a Folha de S.Paulo noticiou o ato e publicou na íntegra o manifesto do Comitê lido, no movimento, por Esther Góes, atriz e presidente do Sindicato dos Artistas do Estado na época.


— Queremos ser cidadãos livres e livremente decidir aquilo a que temos direito. Queremos usar o amarelo como bem nos aprouver. O amarelo símbolo, o amarelo gema, o amarelo das flores sem medo, o amarelo da oriental sabedoria, o girassol amarelo que nos guia, tinge e alimenta. (...) Queremos assumir a dívida da nossa cidadania cassada, acuada, rejeitada, posta para escanteio. (...) Presidente quem escolhe é a gente. Que seja feita a nossa vontade. (...) É preciso sair às ruas. Usar roupas amarelas, bandeiras, bandeirolas, lençóis nas sacadas, fitas nos automóveis. Inundar o país com a cor da campanha pelas eleições livres e diretas para presidente da República.


O manifesto inspirou o título do livro “O girassol que nos tinge”, escrito por Oscar Pilagallo, citado pelo jornalista em seu comentário sobre a participação cultural nas Diretas e a força da união entre a arte e o povo.


— A contribuição de atores, músicos, poetas, escritores e artistas em geral foi espontânea e não obedecia a um comando único. Não houve uma centralização dos artistas a mando de um partido ou político. Foi como escrevi no livro, eles engrossavam o coro cívico cantando junto a Milton Nascimento e Fernando Brant: “Todo artista tem de ir aonde o povo está”.


E eles foram. Em cima dos palanques e ao lado de políticos e representantes de movimentos sociais, os artistas deram força à campanha que, apesar de derrotada em abril 1984, foi pivô para o início de um “longo período de obediência às regras democráticas na República Brasileira”, nas palavras de Oscar Pilagallo. Ricardo Kotscho, quando questionado sobre seu trabalho como repórter, afirmou que cobriu quase todos os comícios. Mas, o da Candelária no Rio de Janeiro se destacou pela dificuldade em acompanhar o povo nas ruas devido à quantidade de pessoas. Segundo historiadores e jornais da época, foram mais de um milhão de presentes na passeata.


— Eu gostava de ficar lá embaixo, mas foi impossível. Não parava de chegar gente, era um mar de pessoas e ninguém sabia exatamente quantas tinham. A Candelária foi totalmente envolvida pela população. Então esse dia foi uma cobertura mais política, de bastidores em cima do palanque. Acabei pegando um diálogo do doutor Tancredo com doutor Ulysses. Tancredo virou para ele e disse: “Ulysses, impressionante, nunca vi tanta gente na minha vida. Como vamos fazer depois para administrar esse povo”? Ele queria dizer que eles não iam voltar para casa tranquilamente, iam ficar na rua querendo democracia, né? Aí o doutor Ulysses respondeu: “Fica tranquilo! O bom é o povo na rua. Isso é que muda a história.”


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