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Ruth Escobar simbolizou ativismo dos artistas na luta pelo voto direto

Carlota Sousa


"Não foi só uma participação, foi uma das raízes do esquema (...) para quem a conheceu, para quem viveu com ela, ela foi uma pessoa extremamente importante."

Em janeiro de 1969 Ruth Escobar foi presa em sua casa diante do olhar aterrorizado dos dois filhos. Não havia nenhuma razão objetiva para a sua prisão. Foi presa simplesmente por ser uma pessoa indignada contra o terror e a corrupção que reinavam no Brasil “(...) em geral ficava pouco tempo, não ficou mais que um dia, mas chegou a ser indiciada mais de 287 vezes durante todo o processo da ditadura”, contou-nos Patrícia Escobar, filha de Ruth Escobar.


No decorrer da história brasileira, um capítulo que brilha intensamente é o movimento "Diretas Já". Este movimento político que aclamava por eleições diretas para a presidência marcou um período crucial na redemocratização do Brasil após anos de regime militar. E entre as vozes destemidas que se ergueram em prol da democracia, uma figura se destaca com brilho próprio: Ruth Escobar.


Atriz, diretora e produtora teatral, Ruth era uma mulher destemida e corajosa que não se calou diante da opressão e se tornou uma das principais líderes do movimento “Diretas Já”. "Ela era uma pessoa extremamente revolucionária em tudo o que fazia, era uma característica dela – uma mulher do norte. Sabe como são as mulheres do norte, não se meta com uma mulher do norte."


Nascida no Porto, a 31 de março de 1936, Maria Ruth dos Santos Escobar emigrou para o Brasil com a sua mãe, Marília do Carmo Santos, em 1951, aos dezasseis anos. Casou-se com o filosofo e dramaturgo Carlos Henrique Escobar e, juntos, em 1958, partiram para França, onde Ruth fez cursos de interpretação. Ao retornar ao Brasil, montou a sua própria companhia, denominada Teatro Ruth Escobar.


O Brasil vivia sob um regime militar há mais de 20 anos. A ditadura havia reprimido a liberdade de expressão e de organização política. Foi nesse contexto de restrições à liberdade de expressão e à participação política que o movimento “Diretas Já” surgiu, em 1984. O movimento exigia o direito do povo brasileiro de escolher o seu presidente por meio de eleições diretas, rompendo com o sistema de eleição indireta imposto pelo regime militar.


Uma das categorias mais atingidas pelo golpe civil-militar de 1964 foi a dos artistas de teatro que sofreram forte censura, perseguições, prisões, torturas e exílio, simplesmente por serem artistas.


A artista foi uma ativista incansável pela liberdade de expressão e do teatro, "mesmo antes das “Diretas Já”, a minha mãe sempre teve uma posição no teatro extremamente revolucionária, ditando a busca da liberdade de pensamento, da liberdade de criação". Ela usou a sua voz, o seu corpo e o seu teatro como ferramentas de luta. O seu teatro foi um espaço de resistência, onde foram apresentados espetáculos proibidos, festivais de textos inéditos, manifestações públicas contra o regime e debates sobre as questões urgentes da época. “Lembro-me de ter 8 anos de idade, ainda antes das diretas já, e a minha casa ser metralhada por militantes do PCC. Ruth era uma pessoa visada pela ditadura, pela extrema direita naquela época”, recorda Patrícia.


No primeiro ano do regime ditatorial, a atriz tomou a iniciativa de enfrentar a opressão. A 12 de dezembro de 1964, a atriz inaugurou a sua casa de espetáculos com a peça "A Ópera dos Três Vinténs" de Brecht. Este local tornar-se-ia um importante centro de resistência contra a falta de liberdade nas décadas seguintes e também seria um dos principais alvos da polícia e do Comando de Caça aos Comunistas (CCC).

Ruth como Dila, em 'Cemitério de automóveis' (1968)

A escalada da violência contra o teatro atingiu o seu ponto mais crítico quando a sala Galpão na casa de espetáculos de Ruth Escobar foi alvo de uma invasão por parte de membros do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) na noite de 18 de julho de 1968. Composto por homens armados, o grupo espancou os artistas, quebrou cenários e destruiu figurinos. Pior tratamento foi dado às atrizes, que foram encurraladas no camarim, tirando-lhes as roupas e agredindo-as fisicamente. Ruth Escobar, tentou registar queixas no DOPS e na 4ª delegacia, mas não obteve êxito.


A produtora teatral seguiu na luta “(...) organizou diversos encontros. Ela era muito eficiente em reunir pessoas de diversas camadas sociais e até de algumas diferenças políticas ou intelectuais, mas que tivessem um conjunto, como por exemplo as “Diretas Já”.


Em 1977, Ruth usou a dramaturgia como forma de desafiar a censura e a ditadura militar. Ela organizou um evento no seu teatro, chamado I Seminário de Dramaturgia, que ficou conhecido como "O Seminário do Proibido". Durante três meses, atores e atrizes apresentaram textos que haviam sido proibidos pela censura. O evento foi um sucesso, atraindo mais de cinco mil pessoas em três meses. Alguns dos textos ali lidos foram, por exemplo, Mulheres de Atenas, de Augusto Boal; Calabar: o Elogio da Traição, de Chico Buarque e Ruy Guerra; Rasga Coração, de Vianinha.


Ruth Escobar foi uma mulher de ação. Ela não só falou, mas também lutou pelas causas que acreditava. Participou em diversas manifestações e organizou o III Festival Internacional de Teatro (FIT) em São Paulo, que teve como tema a luta pela igualdade de direitos das mulheres e onde participaram 18 grupos teatrais da América Latina. A escolha de peças de países sob ditaduras militares também foi uma forma de Escobar enfrentar a opressão política. Ela queria mostrar que as mulheres também eram vítimas da ditadura, e que a luta pela democracia e a luta pela igualdade de gênero eram indissociáveis. “Ela inclusive foi quem criou o Conselho Nacional da Mulher de onde saiu a Delegacia da Mulher. São méritos dela”


A sua luta ultrapassou as fronteiras da classe artística e abrangeu os estudantes, políticos de esquerda e aqueles que lutavam pela amnistia, libertação e volta dos presos políticos, “ela lutava pela liberdade, pela liberdade de você discordar de mim e de eu discordar de você mas de uma forma educada, civilizada, pela liberdade da gente criar, pela liberdade de ter a possibilidade das outras pessoas terem uma educação de excelência, não uma educação militante direcionada para um tipo único de raciocínio, mas uma educação que liberte, que te faça perceber o que é certo e errado.”


A morte do estudante de apenas 17 anos numa das manifestações contra o regime causou comoção em todo o Brasil, levando a manifestações de protesto em todo o país. Em São Paulo, as atrizes Cacilda Becker e Ruth Escobar juntaram-se aos líderes estudantis Luís Travassos e José Dirceu para organizar a “Passeata dos Cem Mil”, que se tornou um marco da luta contra a ditadura militar – uma das maiores manifestações contra o regime.


Foi uma grande personagem, uma grande motivadora. “Não foi só uma participação, foi uma das raízes do esquema” que, apesar de portuguesa, de não ser “a brasileira”, como relata a sua filha, assumiu e lutou pelo Brasil como se fosse o seu próprio país, tanto que um dos seus últimos pedidos foi morrer cá.


Ruth Escobar, o soldado e a flôr

Ao longo de nossa entrevista, Patrícia Escobar compartilhou um relato notável que lança luz sobre a intrépida bravura de sua mãe durante os sombrios anos da ditadura militar no Brasil. Patrícia descreveu um incidente em que ela e sua mãe participavam em uma reunião de mulheres em defesa da anistia quando a presença da polícia militar foi repentinamente identificada. A atmosfera era tensa, pois todas as presentes temiam ser detidas.


Ruth Escobar agiu com rapidez, subindo as escadas de forma ágil e bloqueando a entrada do teatro, consciente da proibição de acesso sem ordem judicial. A renomada atriz confrontou os oficiais da polícia, questionando a validade de um mandado. O capitão da polícia prontamente lhe entregou o documento, que por sua vez o passou para outra mulher presente, que o passou para outra, e assim sucessivamente.


O desfecho desse notável episódio foi que o mandado desapareceu misteriosamente, enquanto a atriz continuava a pressionar os oficiais da polícia, insistindo que ninguém poderia entrar no local sem ordem judicial adequada. Os oficiais da polícia, perplexos com a situação, acabaram saindo em busca dos mandados apropriados. Nesse ínterim, todas as mulheres presentes conseguiram escapar ilesas.


Essa história ilustra vividamente a coragem e a determinação da artista na luta pela liberdade e pela democracia no Brasil. Ela era uma mulher de ação, pronta para enfrentar desafios e proteger os direitos das pessoas. Ruth não só aderiu à causa, como também se tornou uma das principais líderes do movimento. Patrícia Escobar afirma que “ela não foi só uma parte relevante, acho que foi um elemento do elenco principal nesta transformação”.


A sua participação ativa nas manifestações, comícios e atos públicos trouxe visibilidade e entusiasmo ao movimento. Não apenas emprestou a sua voz, mas também a sua presença física às multidões que aclamavam pela democracia.


Ruth, à direita, numa manifestação pela liberdade

Ruth Escobar ingressou na política em 1982 e foi eleita deputada estadual por dois mandatos. O seu trabalho teve grande influência para o processo de redemocratização do Brasil e para o avanço do movimento feminista, tendo sido a fundadora e a primeira presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher.

A atriz não apenas testemunhou a vitória da democracia, mas também contribuiu ativamente para que ela se tornasse uma realidade. O seu legado não se limita aos palcos do teatro, mas também à construção da identidade política do Brasil na era pós-ditadura.


Hoje, quando olhamos para trás e celebramos as conquistas da redemocratização, não podemos deixar de lembrar a coragem e o compromisso de Ruth. Ela não apenas lançou luz sobre a necessidade de eleições diretas, mas também lançou luz sobre o poder da voz do povo e a importância da democracia numa nação “Para quem conheceu, para quem viveu com ela, ela foi uma pessoa extremamente importante”.


Ruth Escobar partiu a 5 de outubro de 2017, mas a sua memória e o seu legado perdurarão como um lembrete eterno da importância de lutar por um Brasil democrático e livre. O seu nome será sempre associado à história brilhante das "Diretas Já" e à esperança incansável de um povo em busca da liberdade.





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