Personagens contam histórias do que ocorreu nos bastidores dos comícios que pararam o Brasil no final da ditadura
A jornalista Sônia Pompeu, que cobriu o comício da Candelária pela TV Globo, teve que usar uma conta matemática para burlar a censura do Governo Figueiredo. A repórter explicou que, como estava impedida de falar sobre a presença de 1 milhão de brasileiros na manifestação, pediu ao capitão da polícia militar o cálculo dos metros quadrados das ruas que estavam ocupadas, para saber quantas pessoas cabiam.
— Aí ele me deu, não podia falar 1 milhão, mas eu passei, na Presidente Vargas cabem tantas, na avenida Rio Branco mais tantas e as pessoas em casa que fizessem as contas [...] Aí dizem que choveu telefonema para a redação da TV Globo com o público dizendo que sabia dos 1 milhão porque tinha feito as contas — disse Sônia.
Naquele mesmo dia, o jornalista Ricardo Kotscho não conseguiu cobrir o comício da maneira que estava acostumado, e acabou por ficar mais tempo com os políticos, sem conseguir descer para interagir com o povo, por não ter mais espaço. Do palanque, ele relembra uma frase entre Ulysses Guimarães e Tancredo Neves sobre a proporção que o ato havia tomado.
— Uma hora o Tancredo virou para o Ulysses e disse ‘Ulysses, impressionante, eu nunca vi tanta gente na minha vida. Como vamos fazer para administrar esse povo depois?’. Ele queria dizer que esse povo não vai voltar para casa tranquilamente, eles vão ficar na rua pela democracia. Aí o Ulysses disse ‘Fica tranquilo, bom é o povo na rua, isso é que muda a história’ — disse Ricardo
ARTICULAÇÕES DA MANIFESTAÇÃO
Além dos dois políticos, no palanque também havia a presença do atual presidente Lula, o ex-governador do Rio Leonel Brizola e do ex-político Mário Covas . Esses líderes foram os articuladores do comício da Candelária. O Rio de Janeiro, na época, se tornou um bastidor da política, nada era discutido em Brasília para não chamar atenção. Eles se reuniam na casa do ex-ministro de ciência e tecnologia Renato Archer, em Santa Teresa, para discutir como e onde seria organizada essa manifestação, os discursos, se seriam contundentes ou mais discretos.
Os políticos não queriam que vazassem nada do que era pensado, para não atrapalhar a mobilização popular. Pouco foi falado para os jornalistas que esperavam para apurar na frente da casa. As reuniões eram levadas a base de uma bebida alcoólica feita de pêra com rum, que ao final era oferecida aos jornalistas, para que não tivessem condição de perguntar. A maioria aceitou.
O então presidente do PMDB, Ulysses, reúne os executivos e disse que a próxima meta do Brasil era alcançar as eleições diretas para a República. Essa reunião motivou o secretário Oswaldo Manicardi, responsável por encontrar a Emenda Dante de Oliveira, na biblioteca da câmara dos deputados. Na época, Dante, o atual deputado federal de Mato Grosso, foi chamado para sala de reunião da comissão executiva, por Ulysses, para ter um aviso.
— Sua proposta de emenda constitucional será a bandeira do PMDB para a convocação de eleições diretas — lembra o ex-deputado Miro Teixeira sobre a fala de Ulysses.
GOLBERY DEIXA ESCAPAR
Em julho de 1981, o ex-ministro-chefe da Casa Civil Golbery do Couto e Silva cedeu uma rara entrevista para a jornalista Sônia Pompeu. Golbery estava na casa do médico Guilherme Romano, enquanto se preparava para ser padrinho de casamento do filho de Romano. Nesse momento, a população queria saber se teria eleições diretas para presidente. Para entrar no apartamento do médico, Sônia, que estava grávida de 6 meses, pediu para usar o banheiro e conseguiu subir.
Minutos depois de cativar o entrevistado, foi autorizada a subida do cinegrafista. Sônia disse que tinha um código na ditadura, que quando ela coçava a orelha, ele poderia ligar a câmera. Quando os dois se viram, o sinal foi feito de imediato. No meio do apartamento, é perguntado para Golbery se o próximo presidente seria um civil e ele prontamente respondeu: “NUNCA!”. Logo após, ele se traiu ao dizer que deveria esperar uma decisão do congresso, dando a entender que poderia ser aprovada uma eleição direta. O ministro chefe se enrolou e fugiu das outras perguntas. Ele se despediu com a expressão “Je m’en vais” (vou me embora em francês). No dia seguinte à entrevista, ele pediu demissão do cargo por causa da falta de punição aos responsáveis pelo atentado do Riocentro.
Conhecido como “O Bruxo”, pela sua ótima articulação, Golbery (1911-1987) construiu a carreira no meio militar, como general e geopolítico. Ele foi o responsável pela iniciação da abertura política no Brasil, em 1974, um dos anos mais violentos da ditadura. O objetivo foi iniciar uma transição lenta e gradual para a democracia, que veio com a promulgação da Constituição de 1988. Por não concordar com os métodos do regime, sempre foi à favor das eleições diretas, mas não poderia assumir ao público.
O REGISTRO DO MILHÃO
O fotojornalista Custódio Coimbra foi o responsável pelo registro que marcou a dimensão do comício da Candelária. Uma foto que retrata um panorama da Avenida Presidente Vargas, estampou a capa do jornal Última Hora.
— Desde cedo, eu fui para a Rio Branco, e pedi autorização no prédio mais alto que nós temos, que foi ocupado durante muito tempo pelo Detran — recorda Custódio.
Ao chegar no topo, se deparou com dezenas de fotógrafos que pediram a mesma permissão. Durante 3 horas, todos revezavam no melhor ângulo. Enquanto havia uma mistura entre a tensão para registrar o momento e a emoção de viver aquela manifestação, ele lembra de ter chorado ao cantar a música Coração de estudante, que tocava enquanto ele esperava a hora de fotografar.
Não havia presença de luz solar à tarde na Presidente Vargas, o ambiente era escuro para fotografar uma panorâmica. A foto foi construída, a noite chegou e a avenida começou a brilhar , o palco foi iluminado, os postes ligados e as salas dos prédios tiveram as luzes acesas. Antes que o céu ficasse escuro, foi a hora que o Custódio registrou os 1 milhão.
Não deu para ver o resultado de imediato. Logo após o registro, ele saiu direto para a redação do Última Hora. A foto foi escolhida ainda molhada, imediatamente depois da revelação, pelo editor. O fotojornalista fez várias fotografias, que se perderam durante a cobertura. A única imagem que sobrou, foi com a rua lotada por brasileiros que pediam pelas Diretas Já.
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